O lugar reservado à experiência na fenomenologia de Husserl

Somos participantes do Projeto de Pesquisa "O lugar reservado à experiência na fenomenologia de Husserl", coordenado pelo Prof. Carlos Tourinho e vinculado à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. 

O presente projeto de pesquisa tem como objetivo investigar a especificidade da posição de Husserl quanto ao lugar reservado à experiência nas origens da fenomenologia. Pretende-se investigar, mais precisamente, em que medida a posição husserliana quanto ao papel da experiência na discussão sobre a relação entre a psicologia e a lógica foi decisiva para o surgimento, no começo do século XX, de uma nova linha de investigação na filosofia contemporânea, a partir da qual nasceria a fenomenologia. Afinal, se os psicologistas (tais como, Stuart Mill, Wundt, Lipps, etc.) propõe uma “física do pensamento”, tomando os processos psicológicos como fonte para a fundamentação da lógica, os lógicos anti-psicologistas (Jäsche, Herbart, dentre outros) apoiam-se unicamente em estruturas meramente formais, prescindindo completamente da experiência. O projeto tentará mostrar que Husserl assume, já a partir das Investigações Lógicas (1900), uma posição intermediária no referido debate, reservando um lugar específico à experiência (afinal, as leis lógicas não são inferências da experiência, embora só por meio dela se possam conhecer). Husserl não incorreria, assim, nem em um empirismo nos moldes psicologistas, nem tampouco em um formalismo logicista. Sua opção seria, conforme a pesquisa pretende mostrar, pela idéia de uma “vivência originária” que é, por definição, intencional, mas que não pode prescindir de “dados sensíveis” sobre os quais os atos intencionais da consciência atuariam no próprio vivido fenomenológico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Pode-se dizer que, em “Prolegômenos à Lógica Pura” (Prolegomena zur reinen Logik) – texto elaborado em 1899 de lições proferidas em Halle em 1896, mas somente publicado em 1900 como um volume introdutório das Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen) – o momento crucial repousa sobre as críticas de Husserl ao psicologismo, cujo equívoco maior consistiria na insistência dos psicólogos do último quarto do século XIX em buscar uma fundamentação para as leis da lógica nos processos psíquicos, em tomar as leis do pensamento em termos de leis psicofísicas, propondo uma espécie de “física do pensar” (Physik des Denkens). Tal pretensão psicologista de fundamentação da lógica na psicologia – conforme apontará Husserl no Sétimo Capítulo de Prolegômenos (intitulado “O Psicologismo como Relativismo Cético”) – implicaria em um ceticismo nocivo e que deveria, portanto, ser evitado a todo custo. Entre os psicologistas do final do século XIX citados por Husserl, tais como Theodor Lipps, Wilhem Wundt, Stuart Mill, dentre outros, prevalece a convicção segundo a qual os fundamentos da lógica encontram-se na própria psicologia, de maneira que a lógica – concebida não como uma disciplina meramente formal e demonstrativa, mas sim, como uma “técnica do pensar” (l’art de penser) – consistiria apenas em uma parte ou ramo da ciência psicológica. Nos termos de Lipps: “A lógica é uma disciplina psicológica, tão certo quanto o conhecer só ocorre na psique, e o pensar, que nele se completa, é um acontecer psíquico”. Em tal concepção psicologista, caberia à psicologia fornecer o fundamento teórico para a construção de uma técnica lógica e, de acordo com tal concepção, jamais se poderia afastar da lógica o seu conteúdo psicológico. Para os adeptos do psicologismo, tal conteúdo psicológico indissociável já estaria presente nos conceitos constitutivos das leis lógicas, tais como os conceitos de “verdade” e “falsidade”, “afirmação” e “negação”, e assim por diante.
Enquanto “ciência de fatos”, que se ocupa com fatos (matter of fact) e, portanto, enquanto “ciência experimental”, a psicologia – ao modo de consideração das ciências positivas – adota a indução como método de investigação. Procede habitualmente por observação sistematizada de fatos particulares procurando descrever a regularidade do que é observado para inferir, então, indutivamente, o que os cientistas positivistas denominam de “leis gerais”. Husserl esforça-se em mostrar que, enquanto regras meramente empíricas (isto é, “aproximativas”), inferidas através da indução exercida pela ciência psicológica, tais “leis gerais” carecem de exatidão absoluta, pois a validade dessas leis depende de “circunstâncias” e, deste modo, não são “leis” no sentido autêntico da palavra. Embora muito valiosas, não são mais do que “generalizações vagas da experiência” (vage Verallgemeinerungen der Erfahrung). Para Husserl, todas as leis alcançadas por indução consistem, na medida em que carecem de validade absoluta, em “leis de probabilidade”. Nos termos de Marvin Farber, “opõe-se, aqui, o caráter ‘vago’ das regras empíricas inferidas por indução à ‘exatidão’ das leis lógicas apreendidas apoditicamente por intelecção”. A propósito de tais regras empíricas, concebidas como “generalizações vagas da experiência”, recordemo-nos ainda do que Husserl nos diz, no § 21 de Prolegômenos: “sobre fundamentos teoréticos vagos só podemos fundar regras vagas”. Neste sentido, essas mesmas leis psicológicas – tais como, por exemplo, as leis de associação de ideias (“semelhança”, “contigüidade” e “causa e efeito”) – não poderiam ser confundidas com as leis da lógica (os princípios lógicos como o “princípio de não-contradição”, as leis da silogística, etc.), cuja validade é a priori, cuja fundamentação e justificação se dão não por meio da indução, por meio de suposições probabilísticas, mas por evidências apodíticas apreendidas por intelecção. Daí o próprio Husserl dizer, no Quarto Capítulo de Prolegômenos, intitulado “Consequências Empiristas do Psicologismo”, no § 21, que: “a probabilidade não pode se impor contra a verdade, ou a conjectura contra a intelecção”. O erro dos psicologistas em tomar as puras leis do pensamento em termos de leis causais da natureza, confinando-as à esfera do probabilismo, resultariam, segundo Husserl, das confusões produzidas pelo próprio modo de consideração naturalista acerca do problema em questão, mais precisamente, por não considerar a distinção crucial entre as leis lógicas (entendidas como “conteúdos do juízo”) e os próprios juízos, no sentido de “atos de julgar”, acontecimentos reais dotados de causa e efeito. Confunde-se, portanto, em tal modo de consideração, o “ideal” com o “real”.
Husserl  deixa-nos claro que, ao identificar as leis do conteúdo do ato com as leis que regulam o processo psicológico, os psicologistas acabam por fazer com que a verdade que constitui o conteúdo do ato dependa diretamente do processo psíquico, isto é, da constituição da natureza humana, o que inevitavelmente levar-nos-ia a afirmar que tal verdade não existiria se não existisse essa constituição. Conforme Husserl esclarecerá no Sétimo Capítulo (intitulado “O Psicologismo como Relativismo Cético”), especificamente, no § 36: “O que é verdadeiro é absolutamente verdadeiro, é ‘em si’ verdadeiro”. Husserl nos lembrará, no mesmo parágrafo, que a constituição da espécie humana é um fato e a partir de fatos somente podemos derivar “fatos”. Por conseguinte, toda tentativa de fundar a verdade sobre tal constituição implicaria em conferir à verdade um “caráter de fato”, o que seria, para Husserl, um contra-senso, uma vez que todo fato é individual e, portanto, temporalmente determinado; já a “verdade em si” (Husserl cita a expressão francesa e leibniziana de vérités de raison) é supra-empírica e, portanto, a propósito dela mesma não faria sentido algum atribuir o discurso de uma determinação temporal. Como o próprio autor faz questão de ressaltar no mesmo parágrafo: “Pensar verdades como causas ou efeitos é um absurdo”. Portanto, para aqueles que, inspirados na tese psicologista, alegam que o “juízo verdadeiro” – como todo juízo – resulta, com base em leis naturais, da constituição do ser que julga, Husserl ([1900] 1913) recorre à seguinte consideração fundamental: não podemos confundir o juízo como “conteúdo de juízo” (isto é, como unidade ideal) com o ato de julgar, concreto e real. A psicologia refere-se aos juízos como “assentimentos” (ou “atos de consciência”), ao passo que a lógica considera o juízo como “unidade ideal de significação”. Eis o erro fundamental do psicologismo: confundir os domínios do real e do ideal.
Husserl lembra-nos, no Terceiro Capítulo (intitulado “O Psicologismo, os seus argumentos e a sua posição em relação aos contra-argumentos usuais”), especificamente, no § 19, que os partidários do que poderíamos chamar de um “anti-psicologismo logicista”, adeptos de uma lógica formal e demonstrativa (tais como, Herbart, Hamilton, dentre outros) não deixam de fundamentar uma separação rigorosa entre os domínios da lógica e da psicologia (tarefa mais do que necessária para afastar definitivamente a confusão dos domínios do real e do ideal e, por conseguinte, para afastar os problemas de fundamentos que resultam da pretensa união desses domínios). Neste sentido, contestam toda tentativa de fundamentação da lógica na psicologia, bem como da concepção da lógica como uma “técnica do pensar", afirmando-nos, como Gottlob Benjamin Jäsche – em sua redação das Lições de Kant sobre a Lógica – que a psicologia considera o pensar como acontece, isto é, como ele é (enquanto ato psíquico), ao passo que a lógica considera o pensar como deve ser. Se a disciplina psicológica – na investigação positiva do processo psicofísico – se ocupa com “leis da natureza”, a lógica ocupa-se, segundo os referidos adversários do psicologismo, com leis normativas do pensar, isto é, do “dever-ser”. Enquanto “ciência de fatos” (e, portanto, enquanto ciência experimental), a psicologia esclarece-nos, através da investigação dos processos psicofísicos, como o pensar acontece, conduzindo-nos, como em toda ciência positiva, a generalizações empíricas que, como tais, não perdem o seu aspecto contingente. Na lógica, porém, trata-se não de regras contingentes (de caráter “circunstancial” ou “episódico”), mas necessárias – não de como pensamos, mas de como devemos pensar. Tais adeptos da lógica formal lembram-nos ainda que a psicologia investiga as conexões reais entre os processos de consciência (isto é, os seus “antecedentes” e “consequentes” causais), ao passo que à lógica interessa examinar não essas conexões naturais presentes nos processos psicofísicos, mas sim “conexões ideais” entre proposições. Para estes adversários do psicologismo, a lógica seria uma disciplina teorética, independente da psicologia e, ao mesmo tempo, uma disciplina formal e demonstrativa.  
                       
CONCLUSÕES

No cenário deste debate, não há dúvidas de que o problema da distinção e da relação entre o real e o ideal acompanhará, para Husserl, toda essa discussão. A possibilidade e, até mesmo, a exigência de redimensionar tal estatuto da referida relação, exigiria, por sua vez, que Husserl reservasse à “experiência” um lugar específico, sem que, contudo, tal procedimento implicasse na aceitação de um empirismo (pois, o empirismo psicologista conduzir-nos-ia, conforme vimos, a problemas de fundamentos). Husserl não poderia, deste modo, responder à questão do estatuto da relação entre o ato de pensar e o conteúdo ideal do pensamento sem que ele mesmo assumisse uma posição quanto ao lugar reservado à experiência em “Prolegômenos”. Conforme se mostrou, em linguagem kantiana, Husserl assume, ao final do Quarto Capítulo, uma posição específica quanto à experiência, não para tomá-la como “fonte de conhecimento” (como solo para a fundamentação da lógica através de inferências indutivas), mas sim para compreender que o conteúdo ideal do pensamento não deriva do ato de pensar e, no entanto, tal conteúdo é visado por intermédio do pensar e, além disso, é visado nele (Nos termos do autor, no § 39 de “Prolegômenos”: “Ele pode ser visado no pensar, mas não pode ser produzido no pensar”. Isto é, apesar da distinção entre o ato de pensar e o seu conteúdo ideal, há uma espécie de “vivência de apreensão” deste conteúdo. É bem verdade que, neste momento do itinerário husserliano (se considerarmos a primeira edição de 1900), faltam-nos ainda a ideia da “constituição” do que é intencionado na referida vivência, bem como a ideia de uma fonte originária e transcendental, doadora de sentido na autêntica imanência do próprio domínio noético do vivido fenomenológico. A partir de 1913, ano no qual seria publicado o primeiro volume de Ideias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie – Erstes Buch), além da segunda edição de Investigações Lógicas, tais ideias nos permitiriam obter uma elucidação da própria concepção da intencionalidade como “objetividade imanente”, cuja originalidade em Husserl permite-nos pensá-la em um domínio transcendental anterior a – e independente de – toda descrição psicológica, superando a concepção de uma fenomenologia meramente empírica da consciência e, com isso, anunciando um novo idealismo transcendental na filosofia contemporânea.
Seja como for, em “Prolegômenos”, o posicionamento husserliano seria, nas origens da própria fenomenologia, de fundamental importância para que pudesse surgir, no quadro da controvérsia entre psicologistas e seus adversários, uma terceira linha de investigação no começo do séc. XX. A prova maior de que as lições de “Prolegômenos” se manteriam vivas no início da segunda década do século XX – momento no qual o novo idealismo transcendental ganharia contornos mais nítidos com a publicação de Idéias I – se deve à constatação de que, ao contrário dos demais volumes das Investigações Lógicas, que passaram, em maior ou menor grau, por modificações substanciais na segunda edição de 1913, o texto de Prolegômenos permaneceu praticamente inalterado em relação ao seu formato inicial, ainda que tal opção tenha custado a Husserl algumas “concessões dolorosas” (conforme ele próprio nos relata no Prefácio à Segunda Edição das Investigações Lógicas), implicando no desconforto de preservar certas concepções do texto de 1900 suscetíveis de erros e obscuridades devido às modificações conceituais resultantes da ampliação promovida pela investigação fenomenológica.
No que se refere ao texto de 1900, conforme vimos, se por um lado, Husserl convida o leitor a tomar partido dos adversários do psicologismo, por outro, não deixa de apontar, não tão claramente no Terceiro e no Quarto e, mais explicitamente, no Oitavo capítulo, o que há de inadequado na argumentação apresentada por aqueles que se dizem, enquanto adversários do psicologismo, adeptos da lógica formal. Inadequação essa que se faz presente tanto no que se refere à aceitação assumida por autores como Herbart, Hamilton, etc., da concepção da lógica como disciplina normativa, quanto no que se refere à posição que assumem frente à questão do estatuto da relação entre o real e o ideal. Certamente, esse é um ponto decisivo sobre o qual Husserl terá muita cautela em abordá-lo. Tal opção de Husserl se deva talvez, neste momento de sua trajetória, a um excesso de precaução de sua parte para que o texto de “Prolegômenos” – enquanto volume propedêutico às Investigações Lógicas, pouquíssimo modificado na segunda edição de 1913, conforme dissemos – não transparecesse ou mesmo insinuasse para o leitor qualquer possibilidade de “retorno” à concepção psicologista, da qual Husserl fora partidário enquanto aluno de Brentano, e da qual ele próprio nos diz, ao final do prefácio da primeira edição das Investigações Lógicas, ter definitivamente se afastado, parafraseando, com um certo humor, as palavras de Goethe: “Com coisa alguma somos mais rigorosos do que com os erros já cometidos”.

  
AGRADECIMENTOS


Agradecemos a PROPPI e ao CNPq, pela concessão da bolsa de PIBIC e pelos demais auxílios prestados durante o período de 2013-2014. 

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